Esse é um endereço novo, então me fala um pouco de você? Quem é, por onde veio? É sempre bom ouvir do lado daí.
O velho morreu, e o novo é aquilo que você já sabe.
Esse ano eu não resolvi fazer nada, e talvez por isso mesmo algumas coisas estejam se encaminhando razoavelmente bem, dado o mundo como ele é. Fui ao Brasil pela primeira vez desde 2019 — falaremos disso depois, talvez, quem sabe —, mudamos de Sagres pro Porto, perdemos nossa casa, moramos num sofá, encontramos outra casa melhor que a primeira. Procurei trabalho e, para minha agridoce surpresa, encontrei bastante.
E em algum momento resolvi que não queria mais.
Em 2018 eu não tava morrendo (eu nunca quis morrer), mas sabia que não tava vivendo também. Uma noite eu cheguei em casa do restaurante e desabei enquanto tirava a roupa pra tomar banho. Chorei. Eu não via meus amigos, não beijava a boca de ninguém (tinha até medo de me aproximar de pessoas que eu achasse atraentes), não tinha dinheiro pra comprar uma calça jeans apesar de trabalhar cinquenta horas por semana — literalmente — com carteira assinada. E, talvez pior que tudo isso, eu não via saída. Eu sabia que tinha entrado ali por uma porta (tinha que ter entrado por uma porta!), mas girava e girava e só via as paredes.
Eu estava como aquelas moscas esverdeadas enormes que entram pela nossa janela com uma destreza balística, e que depois não conseguem sair nem para salvarem a própria vida: me batendo contra uma janela transparente, tentando a todo custo acertar a saída daquela vida que, pelo menos em parte, eu mesmo tinha criado e que agora me consumia sem piedade. Só que eu tentava sozinho. Tentava de um jeito selvagem, na certeza cega de que, se eu consegui me meter aqui, eu consigo sair também.
Mas a mosca não sabe o que é vidro.
Foi nessa altura que eu resolvi que o dinheiro que eu já não tinha seria gasto em terapia. Procurei um psicólogo e me soltei em lágrimas no instante em que ele fechou a porta e me perguntou pela primeira vez “Então, Adnilson, tudo bem?”. Aquele homem grande e de fala mansa se limitou a me oferecer uma caixa de lenços, com certeza não era a primeira vez que ouvia soluços como resposta. Alguns anos depois daquela primeira pergunta e eu moro num país diferente, com uma mulher cuja importância e magia na minha vida não caberiam na biblioteca infinita de Borges — talvez em um soneto do Manuel Bandeira, só talvez — e, embora não tenha muito dinheiro, consigo comprar um celular à vista e tirar umas férias planejadas.
Agora tento fazer a mesma coisa com meu trabalho. Eu entrei nessa vida de cozinha porque achava o máximo aqueles chefs fazendo alquimia na televisão, e fui ficando, em parte porque, sim, a inércia é real e é mais fácil pra mosca entrar do que sair; mas também porque existe algo viciante e muito difícil de descrever em trabalhar em uma cozinha de restaurante, uma cozinha em que três cozinheiros servem mais de cem clientes em duas horas, algo que está lá, etéreo e pulsante, quente, cruel, que quer tudo de você e não te dá nada em troca, algo que se você já trabalhou desse lado do mundo você sabe o que é, mas se você nunca esteve nessas trincheiras comigo eu não sei como te explicar, e esse algo te agarra e não te deixa ir embora, e você quer mais, e você vai se brutalizando, ficando duro, espinhoso, estúpido, e quando você pensa que já deu e que é hora de ir embora ele te dá mais um pouco daquilo que te encantou da primeira vez, lembra?, e você fica mais um pouco e esquece como é comer com talheres e ter modos à mesa porque você sempre come em pé direto de um pote de plástico enquanto balança uma frigideira, mas você tem orgulho disso, você é alguém especial, você é rijo, você aguenta mais do que todo mundo e você sabe e eles vão saber também.
E eu odeio isso.
Odeio reconhecer que eu adoro esse sentimento de surfar o túnel do caos e sair do outro lado. Odeio servir setenta refeições sozinho numa noite, limpar a cozinha e voltar pra casa tão completamente extenuado que eu preciso me convencer de que eu não estou tendo um infarto nem ficando doente — é só um cansaço brutal mesmo.
Eu amo comida. Amo falar sobre comida, pensar sobre comida, fazer comida, descobrir comida. Eu fico cheio de uma ansiedade gostosa andando perto da minha casa nova e vendo todos os lugares onde eu ainda não comi — mas pretendo. Eu quero ler sobre comida e assistir a nova temporada de The Bear. Mas eu odeio trabalhar em restaurantes. Eu não sei como vou conciliar essas coisas na minha vida, já que eu não tenho a cara de pau e os recursos necessários pra tentar virar um influencer de gastronomia das redes sociais nem o capital social pra viver de cozinhar para milionários nas suas redomas de porcelanato.
Talvez eu tenha que cozinhar só pra mim e pra minha esposa, e se for isso eu vou adorar. No momento, eu bato contra o vidro, mas é tentando achar a janela.